Livros que deveriam ser publicados no Brasil #1: I have no mouth & I must scream, de Harlan Ellison

Sempre que conheço o idioma, tento ler obras no original. Assim, acredito que consigo captar melhor o que o autor quis passar. Basta dar uma olhada nos títulos traduzidos de livros e filmes para ver como a tradução tira o sentido do material-fonte. E, lendo essas obras, às vezes me deparo com algo muito bom, que dá vontade de falar sobre, e é quando descubro que isso ainda não foi publicado no Brasil. Por isso inauguro este quadro, onde irei falar de obras importantes, muitas consideradas clássicas, que ainda não foram lançadas no Brasil.


Começarei com I have no mouth & I must scream, conto de 1967 do americano Harlan Ellison, que é um dos mais importantes autores da história da ficção científica. Ganhador de inúmeros prêmios e autor de quase 2.000 trabalhos, é um dos fundadores da New Wave na ficção especulativa. Ele é mais conhecido por ser roteirista das séries Babylon 5 e Star Trek.



Esse é simplesmente o conto mais assustador de toda a FC. É uma mistura de sci-fi e horror, sendo 90% horror e 10% sci-fi. Já começamos com o corpo do personagem Gorrister pendendo, “flácido”, de uma plataforma, seguro apenas pelo pé, seco, sem sangue; o chão abaixo dele limpo, apesar de Gorrister ter um corte de orelha a orelha. Três membros do grupo vomitam. Gorrister cai da plataforma e pergunta por que o computador não os mata logo de uma vez. O computador os mantêm vivos há 109 anos, e não tem intenção de parar.

A estória é contada sob o ponto de vista do protagonista, Ted. Os outros membros do grupo incluem Benny, um homem que é transformado em uma criatura parecida com um macaco; Ellen, a única mulher; e mais dois.

Já que estão sem comida há muito tempo, o homem macaco ataca outro membro do grupo e come sua face. Logo depois, o homem-macaco tenta se matar, mas uma luz sai de sua boca e de seus olhos e ele cai no chão, cego. O computador havia transformado seus olhos em uma gelatina de pus.

Os membros abandonam o macaco e, persuadidos pelo personagem Nimdok (que é um nome que AM deu para ele), um velho alemão, que dizia que deveriam caminhar para achar comida, partem em uma jornada sem rumo. Eles passam por áreas cheias de neve, por regiões montanhosas e até enfrentam um pássaro gigante. Tudo isso por um pouco de comida enlatada que, ao final, eles nem conseguem abrir.

Abrigados em uma caverna, um membro explica para o outro o que está acontecendo, bem ao estilo As you know, Bob… (e essa é a minha única crítica ao conto). Durante a guerra fria -- que virou a terceira guerra mundial -- a Rússia, a China e os EUA criaram supercomputadores, chamados AM. Inicialmente, a sigla significava "Allied Mastercomputer", mas, quando eles começaram a destruir a humanidade passaram a se chamar "Adaptive Manipulator" e, quando adquiriram consciência, de “Aggressive Menace".

O computador americano absorveu os outros dois, engoliu o mundo inteiro, matou todo mundo e, cheio de ódio pelos humanos, deixou cinco deles vivos, para torturá-los por toda a eternidade. Eles são rejuvenescidos, mantidos sempre na mesma idade, e curados sempre que se machucam. 


A “barriga” de AM é como uma imensa caverna de metal, onde ele é onisciente e cria quaisquer condições climáticas. 


Todos os personagens foram afetados de forma a humilhá-los da pior forma possível. O que virou macaco era um bonito e inteligente professor universitário. A mulher havia sido abusada sexualmente antes e tornou-se uma escrava de seus desejos; ela frequentemente faz sexo com os outros (e gosta especialmente do homem-macaco). Gorrister tinha ideais fortes, chegando até a ser objetor de consciência na guerra, mas virou um covarde. O único que está relativamente são é Ted, o protagonista. Mas não por muito tempo.


Enquanto AM estava em sua cabeça, atormentando-o, Ted pensa que o único jeito de eles se salvarem é se matando, já que AM pode deixá-los imortais, porém não indestrutíveis, e também não teria o poder de revivê-los. Nesse momento, AM sai de sua cabeça, com medo.


E temos aí o setting de nossa estória.


“A violência é dolorosa, é cheia de sangue, machuca pessoas, mata pessoas, e eu acho que, quando você mente sobre ela -- quando você a deixa bonita --, você faz as pessoas acreditarem que podem cometê-la com impunidade.”


Essa é uma estória extremamente alegórica, principalmente no que concerne a temas religiosos. AM aparece para os humanos como um arbusto em chamas e ele próprio é uma alegoria do inferno. Ele mesmo não tem boca. E precisa gritar.


O nome AM também vem de I think, therefore I am, de Reneé Descartes. O tema principal do conto é o alerta para os perigos da inteligência artificial (IA), o que é um tema bastante atual. Os algoritmos das IAs dependem dos dados que são injetados neles. Por exemplo, se o banco de dados de uma IA de reconhecimento facial for alimentado com os dados de negros criminosos, essa IA será extremamente racista. A IA não é baseada na realidade, mas só em uma parcela da realidade (os dados que você injeta). No caso de AM, todos os seus dados eram relativos à morte. Como o computador só sabia matar, ele virou aquele “ser” horroroso.


É um conto importante porque, ao lado de uma antologia organizada por Ellison, começou a New Wave do sci-fi, uma revolução. Antes disso, a FC era muito pura, bonitinha. A partir desse movimento, o sci-fi começou a ser mais soft -- no sentido de ser mais liberal nos conceitos científicos -- e a lidar mais com temas políticos, sociológicos e filosóficos. Vimos essa tendência também no cinema.



O conto foi adaptado para um jogo, em 1995, co-escrito pelo autor original, que também empresta a voz à AM. Eu não cheguei a jogar, mas dizem que é bastante perturbador por suas imagens (a de cima é só um gostinho) e também dá mais backstory aos personagens. Vemos, por exemplo, que Nimdok era um médico nazista.


Eu usei esse conto de exemplo, mas quase todo o trabalho do autor Harlan Ellison ainda é inédito no Brasil. E precisa ser publicado. Temos apenas alguns quadrinhos; podem ser encontradas traduções de fãs na internet.


[ATUALIZAÇÃO] Descobri que o conto já foi, sim, publicado no Brasil. Foi na coletânea "Máquinas que Pensam - Obras Primas da Ficção Científica", da editora L&PM. Mas está fora de catálogo, então esse post ainda tem razão de ser.


Eu não tenho boca, e eu preciso gritar:


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