Crônica #3: Audiência

AUDIÊNCIA

Processei a empresa de telefonia. Claro, porque é isso que fazemos toda vez que algo nos aborrece: vamos até o juizado especial e processamos. Bom, pelo menos segundo os meus colegas de trabalho. 
    Seguindo o conselho deles, fui até o escritório de advocacia do meu amigo Gerson, aquele que se formou comigo. 
    — Gerson, — eu disse. — a empresa de… 
    — Não fale! — exclamou ele, erguendo a mão. — Deixe-me adivinhar: internet? 
    — Não. 
    — Energia? 
    — Não. 
    Ele estalou os dedos e esbugalhou os olhos. 
    — Telefone, então! 
    — Correto. 
   — Isso! Eu sabia! 
    Cerrei os olhos e perguntei, atônito: 
    — Mas como você descobriu? 
    — Não foi difícil. Só citei o ranking dos tipos de empresa que mais recebem reclamação. 
    — Sério? As pessoas reclamam muito? 
    — E como! Só se vira homem quando você processa suas prestadoras de serviço. Antes disso, você é só um moleque. — Ele subiu em cima da mesa e se aproximou. — E então? Pronto para separar os homens dos meninos? 
    — Estou. — Meti a mão no bolso e peguei a carteira. — Falando de honorários… 
    — Não! Nem pense nisso! Honorários nós falaremos depois depois de ganharmos. 
    — E se perdermos? 
    — É só recorrer. — Ele deu de ombros. — Não paga nada mesmo. 
    Me levantei sorrindo. 
    — Vamos ganhar dinheiro então, velho amigo! — eu disse. 
    — Vamos! Fique de olho no e-mail. Lembre de comparecer à audiência. 
    Três meses depois...
    Recebi a intimação no meu correio eletrônico. Fui convocado para uma tal de “audiência de conciliação”. Não entendi por quê. Não quero me conciliar ninguém. Eu coloquei a companhia no pau para gritar, fazer barraco, puxar cabelo e ganhar dinheiro no final, não para tomar chá da tarde. 
    Mas parece que é obrigatório, então cá estou. 
    Segunda-feira. Duas horas da tarde. Fórum Central. Sol de rachar. Ar-condicionado? Só no gabinete do juiz. Água? Nem pensar. 
    Me sento na cadeira dura e fico escutando os nomes sendo chamados. O tipo de gente que vem para o tribunal é bem variado: pessoas do interior que vêm de bermuda e são barrados, mas acabam sendo liberados depois; homens de terno caminhando de queixo duro; velhinhos que não tem nada para fazer ao não ser processar alguém; etc. 
    Mas nenhum sinal do Gerson. 
    Tento ligar para ele e nada. O homem de terno sentado na minha frente, me encarando, parece ser o advogado da parte contrária. O maldito está se divertindo; ele parece saber o que está acontecendo. 
    E então o pregão chama o meu nome. O celular escorrega das minhas mãos suadas e cai no chão. Tenho um mini-infarto; o coração quase fura o peito. 
    — O senhor está bem? — pergunta o maldito advogado da empresa. 
    — Estou. — Tento esboçar um sorriso. 
    — Onde está o seu advogado? 
    — Chegando — menti. 
    Entramos na sala de audiência e nos sentamos um de frente para o outro. O frio do ar-condicionado da sala me dá calafrios; o silêncio é sepulcral. E parece ter mais gente dentro da sala de audiência do que do lado de fora. São todos jovens, encostados na parede, segurando cadernos. Estudantes que têm que fazer relatório para passar de ano. Ótimo...
    — O advogado do senhor não chegou? — pergunta a moça sentada atrás do computador. Ele não tem mais do que vinte anos. 
    — Ainda não. Mas está vindo. 
    — Vamos esperar quinze minutos — diz ela. — Se ele não vier, vamos ter de remarcar. 
    — Tudo bem… — digo. — Ah, com licença… 
    — Pois não? 
   — Cadê o juiz? 
    — Não veio. Ele não trabalha segunda-feira. 
    — E você, quem é? 
    — A estagiária. Pode deixar que eu vou conduzir a audiência. 
    Era só o que faltava! Deixar uma pirralha conduzir a audiência! Isto é, se ao menos tivesse audiência… 
    — Já se passaram quinze minutos — diz ela. — Vou remarcar para daqui a três meses. 
    — Três meses?! 
    — É a data mais próxima. É o que eu posso fazer. Os senhores podem se retirar por favor.
    Me levanto e saio da sala derrotado, apesar de nem ter havido batalha. Os estudantes olham para mim: alguns segurando o riso; outros tentando não chorar. O maldito advogado da parte contrária… Bom, continua sendo o maldito advogado da parte contrária. 
    Assim que abro a porta, dou de cara com ele. Gerson. Todo suado, tremendo igual vara verde. 
    — Gerson, onde é que você estava?! Está encharcado! Está chovendo lá fora? 
    — Não — diz ele, ofegante. — Isso é suor mesmo. E aí? Já te chamaram? 
    — Se já me chamaram?! Estávamos esperando aqui há um tempão! 
    — Droga… É que eu tinha esquecido a carteirinha da Ordem em casa, aí voltei para pegar.
    Por algum motivo, estou tendo um déjà-vu aqui. 
    — Olhe — diz ele. — Eu vou pedir para a juíza para ela deixar fazermos agora. Assim, todo mundo fica livre logo. 
    É claro que a estagiária não aceitou. Já tinha até chamado as partes para a próxima audiência. Dei uma bronca em Gerson e mandei tomar mais cuidado da próxima vez. Ele prometeu que iria chegar na hora. Vamos ver. 
    Três meses depois… 
    Sexta-feira. Onze horas da manhã. Fórum Central. Sol de rachar. Quando estou quase entrando entrando na fila do detector de metais, uma coisa chama a minha atenção. Um homem está desarmando uma barraca de camping bem ao lado da entrada do Fórum. E não é um mendigo.
    — Gerson?!
    — Ah, oi — respondeu ele, colocando a barraca dentro de uma daquelas mochilas de escalada de montanha. — Chegou cedo, hein? E aí? Pronto para a guerra? 
    — Não tanto quanto você! — Estou de queixo caído. — Mas… Não me diga que você dormiu aí? 
    — Claro que dormi aqui. Um espartano deve estar sempre à espreita dos persas.
    — O quê?! 
    — Deixe para lá. O importante é que eu trouxe meus instrumentos de trabalho: a carteirinha; o terno; e o meu intelecto. E então, vamos entrar? 
    Quando ouvimos nossos nomes no pregão, entramos na sala cheia de estudantes e nos sentamos à mesa. Só que não há ninguém do outro lado. 
    — Cadê eles? — pergunto. 
    — Eu vou dar quinze minutos — disse a estagiária. — Se não vierem vou ter que remarcar. 
    — E cadê o juiz? 
    — Ele não trabalha sexta-feira. 
    Faço uma careta.
    — Então quando ele trabalha? 
    — Em regime de TQQ. 
    — O quê? 
    A estagiária vira os olhos.
    — Terça, quarta e quinta — diz ela. — Tê, quê, quê.
    Me encosto na cadeira e suspiro. Era só o que faltava. 
    Quinze minutos depois, somos colocados para fora da sala de audiência. Nenhum sinal da parte contrária. 
    — E agora, Gerson? Foi remarcada de novo! 
    — Não se preocupe, meu amigo. O fato de eles terem faltado é porque me viram na última vez e ficaram com medo. 
    — Acho que não, viu…  
    — Claro que sim! Vamos ver na próxima vez. Eles serão obrigados a vir. A terceira vez é a última; se não vierem, perdem o processo por revelia! 
    — Até a próxima então… 
    Três meses depois… 
    Quarta-feira. Nove horas da manhã. Fórum Central. Sol de rachar. Estamos na sala de audiência. Todos dessa vez. Eu e Gerson; o advogado da empresa; os estudantes; a estagiária; e o ju… 
    — Espera aí — digo. — Cadê o juiz? Hoje é quarta, né? TQQ lembra? 
    — Ah, ele está aí — diz a estagiária. — Na sala dele. Só que às quartas ele não atende ao público. 
    — Entendi… 
    — Bom, então vamos começar? — continua ela. — Até que enfim, hein? Nove meses depois. Já deu tempo até de nascer o bebê! HAHAHAHAHAHA! — Ao ver que ninguém riu, a estagiária engoliu em seco. — Bom… Indo direto ao assunto… Alguém tem proposta de acordo? 
    — Não — diz o advogado da parte contrária, sem nem tirar os olhos do celular. 
    — Também não — diz Gerson. 
    Boa, Gerson! É assim que se faz! Não vamos mostrar misericórdia para com os persas! Que acordo que nada! É matar ou morrer! 
    — Muito bem — diz a estagiária. — Obrigada a todos. 
    Todos se levantam, arrumam as cadeiras e começam a sair. 
    E eu estou atônito. 
    — Como assim?! Mas como assim?! — Abro os braços. — Só isso?! Cadê os palavrões? Cadê o barraco? Cadê a guerra? Onde estão as flechas dos persas?! 
    A estagiária me olha de queixo caído. 
    — O senhor está bem? — diz ela. — Está passando mal? 
    — Eu estou bem! Eu estou ótimo! Não está vendo?! Eu quero guerra! Quero guerra! 
    Gerson segura meu braço.
    — Pare com isso — sussurra ele. — Essa audiência foi de conciliação. Vamos para a guerra na próxima. 
    — Não! Eu quero agora! Eu já sei! Já sei o que está acontecendo! — Aponto para o advogado da empresa. — Eles estão fingindo! É uma cilada!
    A estagiária pega o telefone.
    — Alô, segurança — diz ela. — Por favor, venham na sala de audiência número 1. Rápido! 
    — É uma cilada, Gerson! Não vê? Os persas estão só esperando que quebremos nossa formação!
    — Você endoidou?! 
    — Claro que não! Um espartano protege não só a si mesmo, como também o companheiro ao seu lado! Não saia da formação, Gerson! 
    E então os policiais entram na sala. Sendo filmado por dezenas de celulares, sou carregado para fora. Gerson balança a carteirinha da Ordem e grita: 
    — Eu sou advogado! Isso é obstrução da Justiça! Vivemos em um Estado Democrático de Direito! Isso é um absurdo!
    Não serviu para bosta nenhuma. Aliás, serviu para aumentar a quantidade de views que os vídeos vão ter.
    Nós dois somos levados para a delegacia e liberados em seguida. É claro que eu perdi o processo. Gerson agora enfrenta um processo administrativo contra a Ordem e eu fui processado pelo Estado e pela empresa novamente. A audiência de conciliação está marcada para daqui a três meses. 
    E eu não vou contratar o Gerson.

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