Dicas de escrita #1: Show, don't tell


créditos: pensador.com


Quando se é um aspirante a escritor, a dica que mais se escuta é “Mostre, não conte. (Show, don’t tell.)” Não existe coisa mais manjada, mais repetida. O show, don’t tell é quase um mantra. Mas o que diabos isso quer dizer?
Com esse post, inicio minha série sobre dicas de escrita. As informações aqui reunidas vêm de muitas fontes esparsas, bem como de minhas experiências. Mas, recentemente li um livro que resume bem o assunto. Trata-se de Show, Don't Tell: How to write vivid descriptions, handle backstory, and describe your characters’ emotions, de Sandra Gerth. Também o famosíssimo podcast Writing Excuses tem alguns episódios só sobre isso. Recomendo.

Pois bem, a melhor maneira de explicar essa questão é… mostrando. Então vou escrever abaixo um texto de exemplo e retirar os conceitos a partir dele:

— Passa tudo — vociferou o homem de capuz preto, violentamente.
João, o atendente, ficou assustado. Ele abriu o caixa e começou a colocar o dinheiro na bolsa. Ele lembrou que o alarme estava debaixo da mesa. Era só apertar. Mas teria coragem?
João sabia que não deveria ter levantado da cama hoje de manhã. Havia acordado com o pé esquerdo. Estava com febre e não tinha mais pasta de dente nem papel higiênico no banheiro. Seu pai havia lhe dito para faltar o trabalho, mas João não lhe deu ouvidos e foi mesmo assim. Ele olhou para a sua imagem no espelho: um jovem moreno; de cabelos castanhos. Deu três tapas na cara, pegou o carro do pai e foi trabalhar.
E agora, estava com uma arma apontada na cara, quase se cagando de medo, sem saber se deveria acionar o alarme ou não.
De repente, o ladrão encostou a arma em sua cabeça. E gritou drasticamente, ameaçando atirar.
O atendente não teve coragem de acionar o alarme. Entregou a bolsa ao ladrão, que entrou no veículo e foi embora.
João foi em direção ao banheiro, na esperança de encontrar papel higiênico.

         O conto acima até poderia até estar bom para uma primeira versão ( ou draft), mas não para a versão final. Há várias coisas que devem ser mudadas na reescrita. Vamos analisá-lo para ver como ele deveria ser melhorado. Igual a Jack Estripador, vamos por partes:


1)    Advérbios e linguagem.
        
         Logo na primeira frase, podemos perceber que a linguagem escolhida para descrever o diálogo chama a atenção do leitor, e o uso do advérbio conta o que está acontecendo, ao invés de mostrar.

— Passa tudo — vociferou o homem de capuz preto, violentamente.
        
         O “vociferou” tira a atenção do leitor da estória e o faz focar na escrita. Não é recomendado usar palavras que não os clássicos “disse ele”, “disse ela”, “gritou ele”, etc para descrever diálogos (ao não ser que o seu objetivo seja justamente chamar a atenção para a palavra, mas saiba que isso vai afastar o leitor da estória).
E o “violentamente” está contando que a fala foi violenta, ao invés de mostrar. O uso de advérbios é extremamente desaconselhado na escrita. Pessoalmente, acho que eles são piores até do que a voz passiva. Advérbios são cansativos. São palavras longas, que terminam sempre com o mesmo sufixo “-mente”. Evite.
Para corrigir essa frase, basta colocar uma exclamação na fala do personagem, trocar “vociferou” por “gritou” (ou simplesmente tirar) e retirar o advérbio. Perceba que também troquei “homem de capuz preto” por “ladrão”, mas vou explicar isso mais abaixo.

— Passa tudo! — gritou o ladrão.


2)    Adjetivos

Se você usa adjetivos, você está contando, e não mostrando:

João, o atendente, ficou assustado.

Ao invés de usar adjetivos, descreva as emoções que o personagem está sentindo, sempre do ponto de vista dele.

João engoliu em seco. Suor frio começou a descer pela sua nuca, causando-lhe calafrios.


3)    Cinco sentidos

Continuando, podemos usar os cinco sentidos para que as emoções fiquem mais reais:

João engoliu em seco. Suor frio começou a descer pela sua nuca, causando-lhe calafrios. Ele podia sentir o cheiro da pólvora. Suas mãos trêmulas e suadas quase lhe impediram de abrir o caixa.

Cuidado para não exagerar aqui. Não se deve usar todos os cinco sentidos de uma vez só. Espalhe-os por todo o texto.


4)    Pensamentos e diálogo

São ótimas ferramentas para mostrar, e não contar:

Ele lembrou que o alarme estava debaixo da mesa. Era só apertar. Mas teria coragem?

         Poderia ficar:

O alarme está embaixo da mesa, pensou ele. É só apertar… Merda, é só apertar!

Perceba que aqui eu não contei que ele não teria coragem. É o leitor que tem que depreender isso. Respeite a inteligência de quem está lendo; eles não são idiotas (e percebem quando você os trata assim).

E também a parte:

De repente, o ladrão colocou a arma em sua cabeça. E gritou drasticamente, ameaçando atirar.

         Aqui é a mesma coisa. Advérbio desnecessário e uma frase contada que poderia ser substituída por um diálogo:
        
      — Põe esse dinheiro logo! — O ladrão colocou o cano cano frio do revólver na testa de João. — Se você não encher esse saco em dez segundos, eu vou explodir tua cara!

         Bem mais ameaçador. Passa mais emoção e sensação de perigo ao leitor. E note que eu tirei o “de repente” pois esse termo é contraditório: faz com que a cena fique mais lenta e dá o efeito oposto ao esperado.


5)    Infodump e block

Quase toda a cena seguinte é um infodump — quando o leitor despeja muita informação de uma vez só. É muito comum, principalmente em contos, autores amadores descarregarem um monte de informação logo no começo, depois das primeiras frases.
É sabido que o conto é a “escrita do nocaute”. O escritor Cortázar, fazendo analogia com o boxe, dizia que o romance vencia por pontos, enquanto que o conto nocauteava o leitor. Por isso, escritores iniciantes escrevem uma frase de efeito logo no início, iniciando o conto logo no meio da ação (o que está certo) e, logo depois, despejam um monte de informação, pausando a cena (aí está o erro).
No conto-exemplo, todo o terceiro parágrafo é um infodump, que poderia ter sido evitado. Era possível, por exemplo, mostrar João colocando dinheiro no saco e pensando (ou murmurando) que não deveria ter vindo ao trabalho. Ou poderia  fazer um flashback. Mas ele deve ser vivido pelo personagem (observe que isso não é recomendado tão cedo assim na estória, ainda mais em um conto).
Vale ressaltar que, essa pausa na ação nem sempre é errada (como tudo na escrita). Ela também é chamada de “Block” e é muito usada em cenas de luta, para mostrar onde os personagens estão, para onde estão indo, etc. O problema é quando o escritor transporta o leitor para outro tempo e lugar, principalmente no espaço limitado de um conto.


6)    Descrições e termos específicos.

No conto-exemplo, há uma frase só de descrição:

Ele olhou para a sua imagem no espelho: um jovem moreno; de cabelos castanhos.

Trechos assim são amadores. Não se usa um parágrafo apenas para descrever atributos físicos; eles não movem a história para frente. E se olhar no espelho é o pior clichê possível. O recomendado é misturar os parágrafos de descrição com os de ação. A primeira frase poderia ficar:

Ele descolou os cabelos pretos da testa suada, tirando-os da frente dos olhos castanhos.

E eu também quero chamar a atenção para os termos genéricos, como arma e carro. Eles podem ser substituídos por substantivos específicos. Arma eu substituí por revólver. “Carro” pode ser substituído por um modelo, como corolla, ou por um tipo de carro, como SUV, e seguido por um ou dois adjetivos, que podem ser, p. ex., cores ou referentes ao estado do carro (algo como “amassado” ou “novinho”). Isso também vale para o “homem de capuz preto”, que eu troquei para “ladrão”.

Por fim, podemos reescrever o último parágrafo usando mais de uma das sugestões acima:

João não teve coragem de acionar o alarme. Entregou a bolsa ao ladrão, que entrou no veículo e foi embora. João foi em direção ao banheiro, na esperança de encontrar papel higiênico.

Ficaria assim:

      João entregou a bolsa cheia de dinheiro ao ladrão. Não vou arriscar a vida por dinheiro, pensou ele. Não vale a pena. E o dinheiro nem meu é!
       O ladrão entrou no celta velho e saiu, cantando os pneus.
       João cambaleou em direção ao banheiro, sentindo sua cueca molhada, pensando: Tomara que tenha papel higiênico lá...
     

7)    Conclusão

         Contar nem sempre é ruim.
Mostrar ocupa mais espaço.
Mostrar demais é chato.
         Com essas três frases na cabeça, o axioma “Show, don’t tell” ficaria algo como “Show more than tell”.
Lembre-se de que não existem regras na escrita. O que existe são criações dos autores. Às vezes elas funcionam, às vezes não. Tudo também vai depender de seus objetivos, do que você quer passar com aquela estória, qual o seu público, etc.
O que se deve ter em mente é que o leitor de hoje não é o mesmo que leu Senhor dos Anéis sessenta anos atrás. Hoje, as pessoas querem ação. Elas já têm todas as imagens na cabeça. Todo mundo já viu tantas séries, filmes e videogames que os arquétipos já estão todos na mente; não é necessário páginas e páginas de descrição de cenário. Ao ler “deserto” ou “selva” todo mundo já tem essa imagem na cabeça.

Exercício

Como tarefa, escreva frases vagas, sem descrições e depois as reescreva, com detalhes. Faça isso pelo menos dez vezes.
Ex.: A mulher estava chateada. / Suzana mordia o lábio inferior com tanta força que chegava a sangrar.


Resumindo: como regra, escreva descritivamente, mas sem exagerar. Lembre-se de combinar bem as descrições com as ações (o “show” com o “tell”). E, se não der certo uma vez…

Continue lendo. Continue escrevendo.


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Comentários

  1. Parabéns! Dicas que despertam para uma escrita bacana.

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    1. Obrigado, Marialda! Se inscreva que eu vou postar mais dicas!

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  2. Bom dia Alex tudo bem? Sou carioca e procuro novos seguidores para o meu blog. E seguirei o seu com prazer. Novos amigos também são bem vindos, não importa a distância.

    https://viagenspelobrasilerio.blogspot.com/?m=1

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