Dicas de escrita #2: estórias que já vimos demais


Como já falei em um post, venho escrevendo em inglês, tentando entrar no mercado americano. Lá, as revistas literárias recebem contos e noveletas diretamente dos autores (no caso de romances, deve-se ter um agente). E essas revistas têm orientações (guidelines) para que os escritores submetam seus trabalhos de acordo com sua linha editorial. As guidelines explicam: os gêneros que a revista publica; o limite de palavras e quanto por palavra o autor receberá; quais direitos serão cedidos no contrato a ser assinado, etc. Mas o que eu acho mais interessante é que algumas dessas revistas sempre têm seções de “estórias que já vimos demais”. A revista Strange Horizons tem a melhor seção de “por favor não nos mande estórias assim” que eu já vi. Recomendo darem uma olhada.

A primeira vez que me deparei com isso foi em uma revista menor, cujo nome não me recordo, mas que era unicamente do gênero Espada & Feitiçaria. Era algo assim:

Estórias que já vimos demais:

1.Estórias que começam em uma taverna;
2.Estórias que começam em uma taverna e um estranho aparece do nada oferecendo uma missão para os protagonistas;
3.Estórias que começam em uma taverna e um estranho aparece do nada oferecendo uma missão para os protagonistas, sendo que este estranho obviamente é o vilão.

Não sei vocês, mas eu achei hilário.

Realmente, se pararmos para pensar, há muitas estórias iguais por aí. Elas geralmente vêm de autores iniciantes, porque imitam o que lêem e assistem (e eles só consomem tendências atuais). Mas elas também podem vir de autores consagrados. Stephen King escreveu seu livro Sob a Redoma depois do filme dos Simpsons. Em entrevista, afirmou não ter visto o filme e não ter conhecimento daquela estória.

Se isso aconteceu com King, pode acontecer com todos nós. E a causa disso são os tropos de ficção que crescemos vendo e ouvindo. Tropos são estruturas narrativas; espaços em branco que preenchemos com enredo e personagens. O tropo do Escolhido é o mais conhecido.Tropos também serve para indicar qual o gênero da obra (funciona particularmente bem em filmes). É diferente de clichê. Este seria algo como: o personagem está para morrer e alguém o salva no último segundo; ou a menina está andando pela escola com vários livros e se bate com o menino no corredor; ou o protagonista acorda e descobre que tudo era um sonho (ou um jogo de realidade virtual). Geralmente os tropos funcionam. Tanto é que estão aí literalmente há milênios. Os clichês é que nos fazem virar os olhos.

Mas há alguns tropos que os autores simplesmente deveriam parar de escrever.

Nesse post, vou fingir que estou fazendo as guidelines para a minha revista literária (quem sabe um dia?). Vou escrever as estórias repetitivas, dar exemplos e comentar. Caso você (hipoteticamente) queira submeter um conto, por favor siga as orientações. Se enviar uma estória com algum elemento que eu escrever abaixo, será xingado impiedosamente e terá sua foto do RG exposta na internet.


Álex’s Sci-fi and Fantasy Magazine Guidelines

Estórias que já vimos demais:

        1. Viajantes do tempo que voltam ao passado para mudar alguma coisa no presente;
1.1 Viajantes do tempo que voltam ao passado para mudar alguma coisa no presente, e acabam se apaixonando pela própria mãe;
1.2 Personagens que ficam adormecidos por centenas de anos e, quando acordam, acham as tecnologias do presente estranhas;
Exemplos.: De Volta para o Futuro (1985, Dir. Robert Zemeckis), Os Sete (André Vianco), Unbreakable Kimmy Schmidt.
Comentário.: Quando voltamos ao passado e mudamos alguma coisa, não mudamos nossa própria linha do tempo, mas criamos outra linha do tempo. Todo mundo sabe disso. E sobre pessoas que ficaram anos adormecidas, só é chato mesmo. Parem.


2. Estórias que começam com “era uma noite fria”;
        2.1. Estórias que começam com “era uma noite fria e chuvosa”;
        2.2. Estórias que começam com “era uma noite fria e chuvosa, com morcegos voando ao redor do castelo do lorde das trevas.”
Ex.: estórias góticas feitas por autores iniciantes.
Coment.: Se você me mandar uma estória assim, vou publicar só para verem que você não sabe escrever. Ah, e não vou lhe pagar um centavo.


3. Personagem principal descobre que o apocalipse está próximo e tenta evitá-lo;
        3.1 Personagem principal descobre que o apocalipse está próximo e tenta evitá-lo. Personagem principal é padre;
        3.2  Personagem principal descobre que o apocalipse está próximo e tenta evitá-lo. Personagem principal é anjo.
        Ex.: Good Omens (Neil Gaiman e Terry Pratchett),  O dia da besta (1995, Dir. Álex de la Iglesia).
Coment.: O apocalipse não é para ser evitado. Apocalipse significa “revelação”; é quando a verdade virá à tona para toda a humanidade. Um padre ou um anjo é quem mais deveria saber disso! Uma estória assim não só já foi feita muitas vezes, como também não fez sentido em nenhuma dessas vezes. Simplesmente parem.


4. Freiras ou padres com crise de fé;
4. 1 Freiras ou padres com crise de fé que têm que exorcizar uma criança possuída por um demônio;
4. 2 Freiras ou padres com crise de fé que têm que exorcizar uma criança possuída por um demônio. A mãe da criança está louca;
4. 3 Freiras ou padres com crise de fé que têm que exorcizar uma criança possuída por um demônio. A mãe da criança está louca. A protagonista da estória na verdade é a mãe;
4. 4 Freiras ou padres com crise de fé que têm que exorcizar uma criança possuída por um demônio. A mãe da criança está louca. A protagonista da estória na verdade é a mãe. A estória é sobre “o quão assustadora é a maternidade”.
Ex.: O Exorcista (1973, Dir. William Friedkin);  Noviciate (2017, Dir. Maggie Betts); O Ritual (Matt Baglio); The Devils (1971, Dir. Ken Russell) Ritual Romano (El Torres e Jaime Martínez).
Coment.: Praticamente todas as estórias desse tropo começam com alguém falando “Ain, eu não mais escuto a voz de Deus!”. Chega. Simplesmente Chega. Já ouviu falar na regra de Pascal? Nossa vida terrena não é nada comparada ao infinito. Por que a pessoa vai ficar achar ruim ser celibatário se a alternativa é o inferno? Faz ZERO sentido. A questão da maternidade é boa. Há vários filmes recentes que fazem isso bem, como The Babadook (2014, Dir. Jennifer Kent) e US (2019, Dir. Jordan Peele). Se for fazer, faça direito. Só não coloque religiosos perturbados. Ninguém quer ver essa merda.


5. Estórias que começam anos após um apocalipse zumbi;
5. 1 Estórias que começam anos após um apocalipse zumbi e as pessoas são piores do que os zumbis.
5. 2 Estórias que começam anos após um apocalipse zumbi e as pessoas são piores do que os zumbis. Minto: as pessoas SÃO OS  VERDADEIROS MORTOS-VIVOS!
Ex.: Trilogia dos Mortos (1968, 1978, 1985, Dir. George Romero), The Walking Dead (2001-, Robert Kirkman), The Last of Us (2013).
Coment.: Falando sério, depois dos filmes de George Romero qualquer coisa de zumbi é encheção de linguiça. Toda a questão filosófica já foi trabalhada nos filmes dele. Pode até servir como uma diversão escapista, para matar o tédio de um sábado, mas nada além disso. E uma coisa que me incomoda é que o “apocalipse zumbi” nunca é mostrado nessas estórias (às vezes, só em flashbacks). O enredo sempre começa anos depois, em um futuro “pós-apocalíptico”. Mas o início do ataque zumbi é que é a melhor parte! Mostrem isso! Ah, e que porcaria foi The Last of Us Parte 2, hein?! 



        6. Alienígenas tomam os corpos das pessoas;
6.1 Alienígenas tomam os corpos das pessoas. Um deles falha em tomar o corpo do protagonista completamente, tendo que trabalhar junto com ele para salvar o mundo;
        6.2 Alienígenas tomam os corpos das pessoas. Protagonista descobre no final (plot twist!) que está infectado ou um outro personagem revela estar infectado.
       Ex.:  Invasion of the Body snatchers (livro + 4 filmes); Parasyte (1988-1995, Hitoshi Iwaaki); The Thing (filme de 1982, Dir.: John Carpenter, e novela Who Goes There?); Jagaaaaaan (Kaneshiro Muneyuki e Nishida Kensuke).
      Coment.: Esse tropo da ficção científica já se tornou tão comum que o plot twist é óbvio. Todo mundo sabe o que vai acontecer. Não vá pensando que seu final é melhor do que o das estórias que eu citei. Não é. Ninguém vai se surpreender com seu alien saindo da barriga de alguém no final.


7. Distopias em que criminosos devem lutar até a morte para a diversão dos cidadãos.
7.1 Distopias em que criminosos devem lutar até a morte para a diversão dos cidadãos. Protagonista é um adolescente.
7. 2 Distopias em que criminosos devem lutar até a morte para a diversão dos cidadãos. Protagonista é um adolescente. Protagonista quer derrubar o governo.
Ex.: The Running Man (Stephen King e Paul Michael Glaser); The Hunger Games; Battle Royale; Trono de Vidro, Gamer (2009, Dir. Mark Neveldine e Brian Taylor).
Coment.: Esse simplesmente já tem demais. Tenho que admitir que é maneiro. Mas tem que ser feito certo. Pelo menos tem que fazer sentido.


8. Detetive hard-boiled aposentado, divorciado, falido, fumante e beberrão é chamado a resolver um caso que só ele pode resolver.
8.1 Detetive hard-boiled aposentado, divorciado, falido, fumante e beberrão é chamado a resolver um caso que só ele pode resolver. Sua parceira é uma femme fatale trinta anos mais nova.
8. 2 Detetive hard-boiled aposentado, divorciado, falido, fumante e beberrão é chamado a resolver um caso que só ele pode resolver. Sua parceira é uma femme fatale trinta anos mais nova. A estória se passa em Londres.
Ex.: Praticamente qualquer estória de detetive.
Coment.: Sério, chega de Londres. É só isso que eu tenho a dizer.


9. Estórias que combinam tudo o que foi escrito acima.
Coment.: Não vá achando que fazer isso é algo inteligente ou inédito. Ao contrário, é burro e, pasmem, já vimos acontecer demais.



Conclusão

A lista acima não é exaustiva. Eu escrevi exemplos, mas a verdade é que toda estória já foi contada. Tudo já foi feito. O que você deve fazer é subverter os tropos. Ou, como dizem, “me dê a mesma coisa, só que diferente”. Como dito, os tropos funcionam. Só saiba que um editor lendo dezenas de contos por dia provavelmente vai ficar igual ao Robert Downey Jr. no início do post e vai fechar a janela na primeira página (eu paro já na primeira frase).

Você também pode ignorar todas as dicas desse blog. Dicas de escrita são sugestões. A única e irrevogável Lei da escrita é: você tem que ler muito e escrever muito. O resto é resto.

E o último ponto da lista, de combinar as estórias, na verdade pode funcionar se você: 1) pegar um pouquinho de tudo; ou 2) juntar até dois ou três tropos. A primeira opção chama-se pastiche e é o que o Quentin Tarantino faz. Na segunda opção, posso explicar com o exemplo do mangá/animê Attack on Titan (2009-, Hajime Isayama): aquilo é zumbi com Mecha. É zumbi grande. Ponto. O autor só fez unir dois tropos e é tido como um dos mais originais da última década! Durmam com essa.

Continue lendo. Continue escrevendo.



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Comentários

  1. Muito interessante o post. Construir uma história diante de um cenário planejado é bastante importante e facilita no processo criativo.

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    1. José Paulo, obrigado pelo comentário! Sim, tem razão. Também é importante escrevermos coisas que soem inéditas, para aumentarmos nossas chances de publicação.

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    2. Exatamente. Acho fundamental falar sobre ineditismo hoje em dia. O mais do mesmo está latente na construção do entretenimento atualmente.

      Trabalhar o novo ou ao menos trazer formas diferentes de dizer a mesma coisa é algo que precisamos muito. Pegar o que recebemos do mundo e transformar em algo nosso, distinto, que possa estimular outras pessoas a fazer o mesmo.

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  2. Agora, The Las of us - parte 2 não é sobre zumbis e sim sobre construir uma visão de perspectiva do bem e o do mal, demonstrar o quanto estamos habituados a enxergar com nossos próprios olhos e deixamos de lado o que nossas ações afetam a vida das pessoas, o quanto precisamos trabalhar nossa empatia...

    Além disso, traz para o plano de discussão que qualquer pessoa, sob as condições extremas, pode sim realizar as maiores atrocidades...

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    1. Exatamente. TLoU está naquela lista porque é mais uma estória que parece, mas não é, sobre zumbis. A Trilogia dos Mortos a mesma coisa. The Walking Dead também. O problema de TLoU é que não faz sentido (ver aqui: https://www.youtube.com/watch?v=S5ulX06McSY) e é uma cópia do livro/filme The Road (https://www.youtube.com/watch?v=bO8EqMsxOiU). E a sequência... Foi osso!

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  3. Sensacional você trazer ao leitor do blog analises tão originais e carismáticas. Fazendo paralelos com obras importantes.

    A leitura coloca o sorriso no rosto... parabéns!!

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