Crônica #1: República dos Bacharéis

A partir de hoje, vou postar algumas crônicas no blog, que posteriormente serão publicadas em uma coletânea. Já escrevi umas dez, e pretendo lançar o livro com umas vinte. Vou tentar lançar uma semana e o livro depois disso. O livro terá as crônicas do blog mais as inéditas. Algumas delas aconteceram mesmo comigo. Outras, é aquele velho "aconteceu com um amigo de um amigo meu". Mas, no final, todas dizem respeito à vida do brasileiro comum. Espero que gostem:



REPÚBLICA DOS BACHARÉIS


Como 99% dos brasileiros, decidi cursar Direito. Se todo mundo no trabalho já fez, então eu também tenho que fazer. E, assim como 99% das pessoas que trabalham e estudam, fui estudar no turno da noite.
Nas primeiras semanas, eu dormia na cadeira, e vídeos em que eu aparecia babando foram parar nas redes sociais. Então passei a tomar café. No início até que funcionava, mas logo comecei a ter problemas estomacais. De que adianta estar acordado se a dor na barriga não deixa você prestar atenção? E o pior: depois peguei úlcera, o que me deixava com um fedor de boca desgraçado. Pronto! Nem tirar dúvida eu podia mais! 
Direito é um curso superestimado. E talvez nem sequer seja necessário. Metade do curso é decorar os Códigos; a outra metade é decorar os estudiosos e as decisões dos tribunais que, pasmem, estão cagando para esses mesmos Códigos. 
Só eu percebo que uma coisa anula a outra? 
E o que falar dos professores? Primeira coisa: não existe, no Brasil, professor de Direito. Absolutamente nenhum. Isso mesmo: não há, nesse país de dimensões continentais e centenas de milhões de habitantes, um só cidadão que viva exclusivamente de dar aulas de Direito. Pago todo o meu estável salário de funcionário público para quem provar o contrário. O que o Brasil tem é juiz que dá aula, procurador que dá aula e promotor que dá aula. Isso, quando eles dão. 
O que nos leva ao segundo ponto: as faltas. Os professores faltam muito. Ponto. (e quando eles decidem vir você deseja que eles tivessem resolvido tirar plantão no fórum). Eis o que acontece: o homem chega cansado do trabalho, atrasado e sem nem lembrar qual é a sala que o abençoado leciona. Quando descobre, expulsa da mesa os estudantes que estavam jogando baralho (eu incluso), repousa o paletó italiano na cadeira e pergunta: 
— Aonde estão os dulcíssimos vogais? 
O nerd que fica vendo vídeo-aula no fundo da sala responde: 
— Estão todos conversando lá fora, senhor professor doutor. 
— O altivíssimo doutor poderia chamá eles, por obséquio? — diz o professor. 
— Claro, briosíssimo professor doutor, vou colocar no grupo da turma. — Depois de alguns minutos de silêncio constrangedor, o nerd continua: — Eles estão dizendo que o digníssimo doutor não pode mais dar aula hoje porque está muito atrasado. 
O professor faz uma careta, suspira, ajeita os óculos. 
— Magnífico doutor — ele diz. — pois diga aos outros ilustríssimos doutores que eu darei aula do mesmo jeito! Meu horário é das 18:00 às 20:00. Pacta sunt servanda; os pactos devem ser cumpridos! Se os nobríssimos doutores não vierem, todos levarão falta!
Agora, o leitor atento percebeu várias nuances nesse diálogo. Primeiro: o desembargador que dá aula fala juridiquês ao mesmo tempo em que fala português errado. Segundo: não só o nerd chama o professor de doutor mas os alunos são chamados de doutores também (eu gostaria de ler a tese de doutoramento dessa gente). E terceiro: provavelmente o nerd se tornará igual a esse professor. 
E aí os alunos saem dos barzinhos e da cantina e voltam para a sala de aula. Já bêbados e cansados do dia de trabalho (lembra que eu falei que a maioria trabalha?), eles respondem a chamada. O professor não sossega até ter olhado na cara de todos (e sempre pergunta onde estará o aluno que faltou, por que ele faltou, se alguém sabe onde ele está, etc).
Quando a aula enfim começa, com menos de uma hora para o fim do horário, o que o professor faz? Lê o Código. Óbvio. Na verdade, pede para que os alunos leiam, cada um, um artigo, como se fosse primeira série. Resultado: nada fica gravado na mente. 
E por isso eu fiquei de recuperação final. 
Seguindo conselhos, estudei pelas provas dos anos anteriores. Diziam que o eminente professor-promotor-desembargador sempre repetia as mesmas questões objetivas (que ele havia tirado da internet), então eu decorei as respostas. No dia da prova, estava eu e mais um: Gerson, um rapaz que sempre usava terno, por causa do estágio. Depois de uma hora de atraso, o professor entregou as provas. E eu quase entrei em choque. 
“Cadê as perguntas objetivas?!” pensei. “O que é isso?” 
A prova consistia de uma única pergunta subjetiva, que eu não fazia ideia de como responder. Eu nunca nem sequer tinha ouvido falar no assunto. “Não tem problema,” pensei, rindo de nervoso. “É só pesquisar a resposta no Vade Mecum.” 
Várias vezes eu havia estudado para a prova… durante a prova. Isso mesmo, eu levava o Vade Mecum e, sem ter estudado por um só minuto antes da prova, lia os artigos até achar a resposta. Aí era só escrever um pouco diferente do que estava no texto da lei. O problema nesse dia da prova final foi que… 
“Eu não trouxe o Vade!” meu coração acelerou. “E agora?!” Engoli em seco e juntei coragem para levantar a mão e falar: 
— Prof… digo, sublimíssimo doutor? 
Ele levantou os olhos de seu celular e disse: 
— Pois não, excelentíssimo doutor? 
— É que eu… esqueci o Vade Mecum. Posso ir pegar um na biblioteca? 
O desembargador ficou me encarando por um momento e fez um sinal com os olhos. Eu me levantei rapidamente. Primeiro, caminhei rápido até a porta, de cabeça baixa, tentando fazer o mínimo possível de barulho. Quando fechei a porta atrás de mim, saí correndo pelo corredor feito um maluco. Cheguei na biblioteca e limpei o suor da testa e dos braços. Procurei pelo vade mecum nas estantes, mas não encontrei nenhum. Em desespero e com as costas encharcadas, correndo entre as estantes, acabo me esbarrando com alguém. 
— Gerson?! — dei um grito abafado. — O que você tá fazendo aqui? 
— Eu também esqueci o vade mecum — sussurrou o rapaz. Ele havia tirado tirado o paletó e arregaçado as mangas. Estava mais suado do que eu. Provavelmente estava nervoso porque não tinha nenhuma outra faculdade ou curso técnico, coitado. — Quem poderia imaginar que o dito cujo iria mudar as questões? 
— Ninguém. O cara não tem coragem de escrever os próprios votos, quem diga uma prova. 
— Ei, não fale isso muito alto! Eu sou assessor de juiz! 
— Claro, desculpe. 
— E aí, cadê os vades? Você já achou? 
— Não. Não tem nenhum. E eles sempre ficavam por aqui. E agora, o que faremos? 
— Vamos perguntar à bibliotecária. Ela deve saber. 
— Boa ideia! — No balcão, fiz um sinal para que a mulher tirasse os fones de ouvido e pausasse o jogo de computador. — Com licença, onde estão os vade mecum?
— Ah, não tem mais. Estão todos emprestados — disse a bibliotecária. Ela ia voltar a jogar no computador, mas viu nossas caras de choro e disse: — Vocês estão em prova, não é? É só pegar qualquer livro relativo à matéria. Eles sempre têm algumas leis lá. Meu Deus, como vocês ainda não sabem disso?! 
Eu e rapaz de terno nos entreolhamos e dissemos ao mesmo tempo, quase gritando: 
— Obrigado, moça! — E saímos correndo. 
— Ei, façam silên… — ela exclamou, mas era tarde demais. 
Pegamos os livros e voltamos para a sala o mais rápido que pudemos. Com suor pingando nas páginas, copiamos o que achamos no livro e, milagrosamente, passamos na matéria. Tirei cinco e Gerson, cinco e meio. Mas o que importa é passar, não é mesmo?
Recentemente, foi a nossa formatura. Gerson contou essa história no microfone. Todos riram. Menos eu, que me derreti na cadeira. 
Já tentei fazer o exame de Ordem três vezes. Mas sempre falho na segunda fase porque são perguntas subjetivas que eu nunca ouvi falar. A primeira fase, objetiva, sempre passo com folga. Fico me perguntando o porquê. 
Minha esposa e meus amigos me aconselharam a parar de tentar passar no exame. “Não vai servir para nada mesmo”, diziam. “A anuidade é muito cara, mais cara do que um salário mínimo.” Fiquei chateado de início, mas depois concordei. 
Agora eu tenho esse diploma, que colei na parede do meu cubículo no trabalho, igualzinho aos meus colegas. Sempre olho para ele com orgulho e, com lágrimas nos olhos, penso: “Valeu a pena”. Agora sou um BACHAREL EM DIREITO. E esse prestigiado título ninguém me tira. 
Ah, e também não pago anuidade.



Continue lendo. Continue escrevendo.



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