Dicas de escrita #7: Minha opinião após assistir duas aulas de Domestika sobre escrita

Após ter perdido tempo e dinheiro assistindo aquelas três MasterClasses sobre escrita, decidi, não sei por que raios, assistir aulas de outro agregador de conteúdo famoso—famoso por encher meu saco toda hora. E agora, conto para vocês minha experiência, para que vocês não precisem passar por esse calvário também.



Para começar, vou falar da plataforma em si. Primeiramente, destaco que, em Domestika, é possível aumentar a velocidade dos vídeos, como no Youtube, o que não é possível na MasterClass e é um baita de um ponto positivo para a Domestika, porque é possível fazer o curso pela metade do tempo. Os professores de Domestika anexam muito material de apoio e fornecem links, mas eles são todos em espanhol, ao menos nos cursos que eu fiz. Não há como traduzir. Acho que se os professores fossem de outra língua, o material seria somente na língua deles também. Além disso, as aulas são legendadas. E a tradução não é das melhores. Por exemplo: "argumento" virou "discussão"; "logline" virou "linha de log" (WTF?).

No Domestika, quase todo mundo é desconhecido. A maioria é latino-americano e tem muitos brasileiros. Eu só reconheci o quadrinista espanhol Paco Roca, que fez o ótimo Rugas. A MasterClass ainda tem o apelo de ter grandes nomes. Você pode assistir aulas de seu ídolo  (e pagar uma nota por isso, mas enfim...). 

No Domestika você pode ser PRO, pagando uma assinatura anual de R$ 249,00. Só que isso não lhe dá acesso a tudo: só te dá desconto de 20% em todos os cursos, acesso a alguns cursos gratuitos e direito a certificado pelos cursos que fez (pois é, você não recebe certificado se não for PRO). Já vemos aqui uma diferença de preço gritante para com a MasterClass. Os americanos cobram U$ 90,00 por aula avulsa e U$ 180,00 para assinatura anual. Na cotação de hoje, isso dá R$ 9937483141948,00 aproximadamente. 

Se você escreve, fotografa, desenha ou exerce qualquer atividade criativa, provavelmente já viu alguma propaganda de promoção da Domestika. E eu tenho que dizer: ELES ESTÃO SEMPRE EM PROMOÇÃO. Nossa, eu fiz aquelas MasterClasses porque as propagandas estavam me enchendo o saco (e eles nem fazem promoção), mas Domestika quebrou o recorde.

Assisti duas aulas que estavam em "promoção":  Escrita de roteiro para Cinema e TV, de Julio Rojas; e Roteiro para curtas metragens de Ficção, de Ajeandra Moffat. Ambos são roteiristas chilenos.


Vou começar falando da aula de Julio Rojas. 

Após uma breve introdução, Julio começa explicando a sua "pasta de scripts", que é onde se armazena tudo sobre a estória. É algo que só o roteirista entende, porque vai parecer confuso para outra pessoa. Pode ser digital ou físico e o dele tem dezenove itens. Há os personagens, o resumo da estória, a sinopse, a escaleta, a estrutura, etc. Isso é importante porque é muito difícil simplesmente abrir uma página em branco e começar a escrever. Com a "pasta de scripts" (que é comumente chamada de bíblia), o escritor já tem um norte. Ele diz que uma pasta de scripts será o projeto final do curso. A unidade 1 é só isso. Dura uns 10 minutos.

A unidade 2 chama-se "introdução às histórias". Na primeira aula, ele fala sobre como saber se a estória merece ser contada. Para isso, fala das estruturas clássicas de tragédia e comédia e fala que a ideia só tem potencial narrativo se o personagem tiver uma mudança interna ao final da estória, e essa mudança deve ser relevante e permanente. Se não o for, se os eventos da estória não forem impactantes o suficiente para deixar uma marca eterna, a estória ainda não acabou ou nem deveria ter sido contada.

Julio explica que, utilizando-se das estruturas dramáticas clássicas de tragédia e comédia, ascensão e queda etc., há basicamente 36 tipos diferentes de estórias. Ele fala de ponto de vista, estrutura de três atos...

O universo físico é parte narrativa e não pode ser esquecido pelo roteirista. A topografia, a sazonalidade, em que ano a obra se passa... tudo isso deve ser levado em conta. Gostei muito do conceito de universo periférico, que é que está acontecendo fora da cena. Deve-se ter em mente que os personagens não estão em uma bolha; há todo um universo ao redor. Além disso, todos os personagens têm um passado.

Na aula "alteração do tempo", da unidade "dispositivos narrativos mais utilizados", ele explica algo como "embaralhar" o fluxo temporal da estória, que é uma das principais ferramentas dos roteiristas. Os exemplos mais comuns são o flashback e o flashforward. A estória estava indo por uma sucessão lógica e o roteirista "bagunça" tudo, para torná-la mais interessante.

Outro conceito legal é o de dissociação harmônica, que é quando o escritor destrói um arranjo narrativo clássico, transformando-o em outro. Por exemplo, a combinação assassino + arma + campus universitário ou cowboy + revolver + saloon são muito comuns e remetem a vários filmes, então soam como cópias. Mas, se bagunçarmos isso, faremos uma narrativa totalmente nova. Exemplos: Psicose (1960, Dir. Alfred Hitchcock) e Alien (1979, Dir. Ridley Scott). A cena do chuveiro em Psicose é impactante justamente por se passar na hora do banho, momento em que ninguém esperava um maluco vestido de mulher esfaqueando a protagonista. E essa dissociação não é apenas dos elementos da narrativa; ela pode ser também, por exemplo, nas emoções. Ele cita Pulp Fiction: a cena em que Julius come um hambúrguer, bebe refri e faz uma citação modificada da bíblia antes de matar um cara é inesperada porque nenhuma pessoa normal faria essas coisas antes de encher um moleque de bala.

E tudo isso eu já sabia.

A única coisa que eu consegui retirar desse curso foi quando ele começa a falar de personagens. Ele fala que cada personagem tem vários personagens dentro de si. Por exemplo, em The Shining (1980, Dir. Stanley Kubrick), Jack Torrance é pai, vigia, marido, escritor e está formando uma nova personalidade, que é o quinto personagem. É como se cada um desses personagens fossem clones de Jack Torrance. E cada um deles tem seu próprio arco. 

Tirando isso, eu já sabia tudo das cinco horas de aula. E eu tenho várias críticas ao conteúdo do curso. Primeiro que essa ideia de que o personagem tem de mudar ao final não é de todo verdadeira: há estórias bem-sucedidas com personagens que não têm arcos. James Bond e Indiana Jones não têm arco algum. Segundo, e levando em consideração que a afirmativa seja verdadeira, dizer que o personagem deve mudar não é a melhor dica, pois, como Assis Brasil diz em Escrever Ficção, o personagem precisa é mudar o jeito com que ele encara determinada situação, e não necessariamente mudar a si mesmo.

Ele disponibiliza a bíblia do filme que ele está escrevendo e outros arquivos para baixar, mas está tudo em castelhano. Tem uma unidade em que ele deixa a Poética, de Aristóteles, disponível para download também. Sei que é uma obra importantíssima, mas achei engraçado colocar algo que você acha tão facilmente na internet.

O projeto final é escrever um storyline. Eu fiquei chateado de início porque preferia que fosse um roteiro mesmo, mas, pensando bem, o curso não te prepara para isso.

A aula que trata da formatação do roteiro é uma aulazinha de dez minutos. E isso é um ultraje porque formatação é importantíssima. Há cursos só para isso. A formatação de roteiro é única e muito difícil para quem vê pela primeira vez. É algo que deriva das máquinas de escrever, não muda há um tempão e não é nada maleável. Seus termos derivam do inglês e devem ser usados em roteiros escritos em qualquer língua. É uma formatação muito "draconiana" por assim dizer.  Não importa se você é o Quentin Tarantino ou Aaron Sorkin, você tem que escrever seu roteiro em uma fonte Courier tamanho 12, começar com FADE IN, centralizar os diálogos, dizer se as  cenas são interiores ou exteriores com INT. e EXT. e terminar com FADE OUT.

Enfim, o curso não é ruim. Ele apenas pode ser um pouco irritante para quem não é iniciante. Certo que é sempre bom relembrar o basicão, mas será que devemos pagar para isso?


Agora trato do curso ministrado pela escritora também chilena Alejandra Moffat. Fiz esse curso pelo mesmo motivo que fiz a MasterClass de Joyce Carol Oates: é sobre estórias curtas.

Alejandra é bem diferente de Julio. Ela mostra fotos da casa dela no início:  local é todo bagunçado, cheio de papéis post-it na parede, fotos espalhadas no chão. É uma casa de "detetive particular", como ela diz. Ela escreve muito à mão e é bem caótica. Suas influências são diretores mais cult, como Ingmar Bergman e Agnès Varda. Julio, por outro lado, é mais "organizado" porque faz tudo no computador e  suas influências são mais nerds, como Steven Spielberg e Tarantino.

Na primeira aula, Alejandra fala de onde tiramos ideias. Ela fala de observação e de ter um caderno para anotar tudo. Fala em olhar a disposição dos objetos e ver o que as pessoas (que são personagens, por assim dizer) estão fazendo. Engraçado, o Neil Gaiman disse a  a mesmíssima coisa...

Ela fala de como descobrir se a ideia é uma ideia para um curta-metragem ou longa-metragem. Um curta deve ter poucos personagens; pode ter tramas e subtramas, mas não tramas paralelas. Não se pode ter mais de dois pontos de virada.

Na aula "Os primeros ingredientes - Parte 1" ela diz que, ao final, o personagem deve mudar (claro!), seja no curta ou no longa. Logo depois, Alejandra fala dos tipos de conflito. Pois uma estória não sobrevive sem conflito. Personagem versus sociedade, personagem versus natureza... Tem que ter conflito.

Ela também explica o que é final aberto e final fechado. O primeiro é quando o filme acaba e os créditos sobem sem que tudo fique explicado. Muitas perguntas ficam no ar para que o espectador tire suas próprias conclusões. O final fechado, ao contrário, é quando nada fica sem resposta.

Em "Projeto de Plotagem - Parte 1" ela explica o que é uma premissa e abre o programa Final Draft. A primeira coisa que ela fez foi escrever um título. Óbvio. Aí ela vai e faz uma bíblia, igual a do outro curso.

Me decepcionei principalmente porque não há muita diferença em relação ao outro curso. Não há nada especial para o curta-metragem. Em uma aula, ela até. usa como exemplo um mesmo filme que Julio usou, que é Lost in Translantion (2003, Dir. Sofia Copola).

Ela fala que escrever na verdade é reescrever. Deve-se revisar várias vezes todo o roteiro. É como ir ao médico: devemos examinar o corpo inteiro, não podemos sair com a garganta boa e o joelho ruim.

Alejandra não fala de formatação, mas sua última aula chama-se "escreva para uma equipe de produção". Você não está só. O roteiro é um mapa para toda a equipe, com indicações para o fotógrafo, o diretor, etc.

O projeto final dela é uma escaleta.

E é basicamente isso. O curso tem quatro unidades que totalizam duas horas. Isso é metade do outro curso, que tem oito unidades, apesar de ter o mesmo preço.

Ela comete o mesmo erro de Julio ao dar uma dica que não é necessariamente verdade: tem que ter conflito. As estórias orientais, como os mangás e Viagem para o Oeste, por exemplo, não tem o conflito como ponto principal e são ótimas. Além disso, só ter conflito não basta: esse conflito tem que ter propósito. O ideal é que o personagem tenha um objetivo e algo o atrapalhe.

Enfim, se você quiser pagar para ouvir que a primeira coisa que temos que escrever é o título e que escrever é reescrever, vá em frente.

Conclusão

Apesar de não ter o mesmo luxo, Domestika é igual a MasterClass: óbvia demais. Os professores falam coisas óbvias, mas falam do jeito deles. E eles não são necessariamente professores; são apenas bons no que fazem. Mas isso não quer dizer que sejam bons em ensinar. Muitas vezes, o professor bom não é bem-sucedido na área, mas sabe explicar o assunto como ninguém. O professor de musculação não precisa ser forte. A teoria é igual para todo mundo. A prática é que é outra história. Outra coisa: os professores de Domestika e MasterClass não sabem o nível de quem está do outro lado da tela, então julgam que somos totalmente crus. Os cursos não têm nível de dificuldade, o que seria muito bom para sabermos onde investir tempo e dinheiro.

Em conclusão: não recomendo comprar os cursos. Também não recomendo baixar ilegalmente. Porque, bom, é ilegal (Duh!), e também porque não vale o seu tempo, mesmo sendo de graça. Só recomendo mesmo para quem não sabe nada. Eu, por exemplo, tenho interesse em desenho, mas só sei sei desenhar stickman. Então curso de desenho do Domestika seria indicado para mim.

A melhor dica para treinar escrita continua ser ler muito e escrever muito. Manuais e cursos, via de regra, são decepcionantes. Eu até indico alguns, como o já citado Escrever Ficção e Para Ler como um Escritor. Mas a maioria é dinheiro no lixo.

Termino deixando um vídeo de Orson Oblowitz, produtor e filmógrafo de sucesso que nunca leu um manual de escrita, mas já leu vários roteiros:


Continue lendo. Continue escrevendo. 

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