Dicas de escrita #8: Desmistificando os conselhos de escrita mais comuns

Oi. 

Estive ausente do blog por um breve período. Quatro meses. Os motivos são diversos: um mix de estudos, faculdade, animes, preguiça, filmes, leitura e escrita. Sim, não parei de ler e escrever ficção--na verdade, faço isso mais do que nunca. Continuo escrevendo contos e enviando para revistas. Só não tive sorte ainda. 

Enfim, finalmente resolvi voltar ao blog. Estive discutindo ficção em fóruns pela internet a fora, então estou com algumas ideias para novos posts. A primeira delas é sobre os mitos sobre escrita criativa que circulam por aí. Vou deixar os meus dois centavos sobre como as pessoas não entendem os principais conselhos de escrita. Vamos lá:

1: Show, don't tell:

Ah, o famoso "Não conte, mostre." Esse é, provavelmente, o primeiro conselho de escrita que todo mundo ouve. É a aula número 1 do curso que você comprou no Hotmart (depois da introdução, claro). O primeiro post de dicas de escrita foi justamente sobre Show, don't tell. E, como todo conselho que vou criticar aqui, ele é, a princípio, verdadeiro. Só é pouco explicado por quem aconselha e, por isso, mal-entendido por quem ouve.

Nem sempre você precisa mostrar; às vezes, você pode contar. Você, como autor, tem total controle. E isso vai depender de vários fatores, entre eles: a importância da cena, o tamanho da cena, o tamanho da estória que você está escrevendo, o gênero, etc. Tem gente que, logo após ouvir que contar é errado, sai caçando esses trechos nas estórias dos outros. E isso inclui editores. Já recebi várias cartas de rejeição que diziam: "Tem mais telling do que showing, logo, não está no nível que queremos." O problema é que eles não percebem que eu tenho consciência das partes em que escolhi contar, e não mostrar.

Outra coisa: só mostrar não é o bastante. Escrever "ela viu as luzes do trem à distância" ao invés de "o trem estava vindo" é bom, mas ainda é nível de amador. Para a escritora vencedora do Hugo Mary Robinette Kowal, você deve ir um pouco além. A descrição deve ser sensitiva para o leitor, fazê-lo sentir aquele momento e aquele ambiente. Você pode usar o tato, o olfato, etc. A cena da estação de trem ficaria assim: "Ela sentiu o chão vibrar antes mesmo de ouvir o barulho dos trilhos." Funciona ainda melhor se for a frase de abertura da cena.

2: Comece escrevendo contos

Escrever e publicar contos ajuda a ganhar notoriedade e publicar romances. Ou, ao menos, isso é o que diz o senso comum. Mas a ciência não confirma isso. Uma pesquisa citada no (ótimo) podcast Writing Excuses, que estudou as primeiras publicações longas de autores, descobriu que a grande maioria não tinha publicado contos anteriormente.

Ou seja, trata-se de um mito.

Mas não machuca.

O que você tem que entender é que um conto não é um romance pequeno. São duas coisas muito diferentes. Escrever um conto não é necessariamente mais fácil do que escrever um romance. Alguns até diriam, com razão, que é mais difícil. Contos são escritos mais rapidamente, mas isso não quer dizer que seja fácil escrever um conto bom. Se você não souber disso, e for ruim em escrever estórias menores, vai ficar desmotivado ao tentar escrever em romances. Você vai achar que é um bosta escrevendo estórias longas também.

Contos são um ótimos laboratórios. Você pode explorar diferentes tipos de pontos de vista, diferentes demografias, arcos de personagem, gêneros, e mais um sem-número de coisas. Para romancistas, escrever contos pode ajudar a escrever melhores cenas. E esses contos não precisam ser publicados. Eles vão servir apenas para melhorar a sua escrita. Tem autores que escreveram centenas de contos que nunca nem pensaram em publicar.

Além disso, terminar uma estória (assim como terminar qualquer outro trabalho) é extremamente gratificante. Como Joyce Carol Oates fala em sua Masterclass, escrever aquele "THE END" libera hormônios que vão lhe dar uma sensação de satisfação. É similar a voltar para casa depois de praticar atividade física. Contos são pequenos, logo, você pode terminá-los rápido... e ter satisfação mais rápido! Romances, por outro lado, podem demorar anos. E as pessoas (eu incluso) geralmente nunca terminam romances. Dizem que a maioria dos aspirantes a escritor nunca chega a terminar uma única obra sequer. E o resultado disso é pura frustração.

Essas são as verdadeiras razões para se escrever contos: treinar escrita e tomar uma injeção de ânimo. E se tudo der errado, você gastou o quê? Três, quatro dias? 


Esse cara... Não seja esse cara.


3. Conflito é central para a narrativa:

Vai com calma. A resposta aqui é a mesma: não necessariamente.

O conflito deve ser visto como um obstáculo que deve ser vencido, e não apenas uma espécie de batalha. O jeito com que o personagem encara esse obstáculo revelará quem é o próprio personagem. Personagem é ação. Se o personagem se acovarda diante do obstáculo, o leitor, inconscientemente, o verá como um covarde; se enfrentar o obstáculo com malandragem, será malandro, e assim por diante. Isso é especialmente importante para o início e para o fim da estória, pois é como analisaremos se o personagem teve um arco.

Eu entendo o porquê dessa dica ser dada a autores iniciantes. É que eles geralmente escrevem estórias que são apenas descrições, por exemplo: um castelo mal-assombrado em que nada acontece. Ou seja, não há narrativa. O autor principiante, bobo do jeito que é, acha que está assustando alguém ao descrever um castelo gótico, trovoadas e morcegos. Mas você, meu leitor, já passou dessa fase há muito tempo.

Patolino dando aula.

Além disso, o conflito é essencial na narrativa ocidental, mas não na oriental. Os asiáticos, com seus mangás, animes, mahwas, poesias, videogames e outras mídias, utilizam uma estrutura de quatro pontos para contar estórias. Viagem para o Oeste, talvez o magnum opus da literatura asiática, não tem o conflito como parte central da narrativa e segue exatamente esse modelo originado na China.

Apesar de haver ligeiras diferenças de interpretação na China, no Japão, e na Coréia, a estrutura se chama Kishotenketsu, e cada parte dessa palavra composta significa um plot point comum a esses países.

Ki- é a introdução. Como o nome já diz, é quando o cenário e os personagens são apresentados.

sho- é o desenvolvimento. O início da ação, talvez equivalente ao incidente incitante da estrutura narrativa ocidental.

ten- é o twist. Algo inusitado acontece. Geralmente algo engraçado, assustador, ou uma sacada interessante.

ketsu- é a conclusão ou o resultado. Equivalente ao falling action das narrativas ocidentais.

Perceba que o conflito não é necessário aqui. A estrutura de quatro pontos acontece aos personagens; e não os personagens que fazem a estória caminhar (o que já desbanca outro conselho duvidoso: personagens devem ter agência).  

A estrutura pode ser identificada em um único capítulo de mangá, ou ainda em tirinhas de quatro quadros. Se você já leu Dragon Ball ou Cavaleiros do Zodíaco alguma vez na vida, você leu uma estória em que o conflito, embora existente, não é central para a narrativa.


4. Personagens devem ter arcos:

A autora K.M. Weiland, em seu livro Creating Character Arcs: The Masterful Author's Guide to Uniting Story Structure: 7, fala basicamente sobre três tipos de arco: o positivo, o negativo e o reto (flat). A necessidade (need) e o desejo (want) do personagem estão diretamente ligadas a esses arcos. Assim, podemos ter basicamente quatro tipos de final: o final totalmente feliz, em que o protagonista consegue tanto seu querer quanto sua necessidade; os finais em que ele consegue apenas um ou outro; ou o final mais triste, em que ele não consegue nem um nem outro.

Não obstante, esses arcos estão diretamente ligados à "mentira" que o protagonista acredita no início da estória. Ao final, ele pode deixar de acreditar nessa mentira, ou ele pode seguir acreditando nela. Nesse último caso, ele não mudou.

Ou seja, o personagem não necessariamente deve ter um "arco", já que uma linha reta não é um arco. Nesse tipo de estória, o protagonista não muda simplesmente porque ele não precisa mudar. Ele muda o mundo ao redor dele. Há estórias sensacionais em que isso acontece. De volta para o Futuro (Dir. Robert Zemeckis) é um dos melhores exemplos, mas também há outros como: Jogos VorazesGladiador (2000, dir. Ridley Scott) e Fuga das Galinhas (clássico!). Personagens como o Superhomem nunca mudam. Ao final da estória, eles estão outro lugar, mas ainda acreditam nas mesmas coisas. É que eles já são quem eles precisam ser. O mundo é que uma merda.



Mais uma coisa: dizer que o personagem muda é um erro. Como o professor Assis Brasil conta em Escrever Ficção. Um Manual de Criação Literária, o personagem em si não muda, o que muda nele é o jeito em que ele encara a situação.


5. Escreva o que sabe, escreva o que gosta

Escreva o que sabe, para mim, já morreu. Dizer que o autor só pode escrever sobre aquilo que ele sabe caiu por terra faz tempo. Se é que já existiu para início de conversa.

O que viria depois disso seria, naturalmente, "escreva o que você gosta". Apesar dessa dica não ser errada, é extremamente barata. Eu gosto de zumbis, então vou escrever sobre pessoas matando zumbis. Ok.

O problema é que vai ficar faltando alguma coisa. Essa estória pode ser uma boa diversão escapista, e até se tornar best-selling, mas não tem nenhuma chance de se tornar um clássico ou de fazer as pessoas pensarem.

É que por isso que você deve escrever sobre o que você quer saber.

Isso mesmo. Deve-se escrever sobre aquilo que você não sabe, mas queria saber. A primeira vez que eu ouvi isso, em uma entrevista, foi um choque. Mas eu logo entendi.

Pense: "Quantas estórias foram escritas sobre o que é ser humano?" Você sabe? Eu não sei. É demais para contar. E elas nunca vão parar de ser escritas, pois simplesmente não dá para escrever sobre toda a condição humana em uma única série de livros ou em um único roteiro de filme.

A melhor arte é feita quando o artista está com dúvida. Este deixa os seus dois centavos sobre determinada coisa. E as pessoas vão discutir. E você pode não concordar com a opinião dele. E tudo bem. 


Continue lendo. Continue escrevendo. 
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