Conto #1 : Sob um quiosque em um parque

Começo agora o quadro em que compartilho contos gratuitamente. Já temos  o quadro das crônicas, que vai continuar, mas decidi fazer esse também. Vou postar contos que falharam em algum processo seletivo por aí. O primeiro é um conto policial, baseado no conto "Dentro do Bosque", de Ryunusuke Akutagawa, adaptado para o cinema por Akira Kurosawa, sob o nome de Rashomon, em 1950. 



Sob um quiosque em um parque

Declaro iniciada esta Sessão de Julgamento. Lembro a testemunha que, de acordo com o art. 203 do Código de Processo Penal, fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que souber e Ihe for perguntado, devendo declarar seu nome, sua idade, seu estado e sua residência, sua profissão, lugar onde exerce sua atividade, se é parente, e em que grau.

O senhor declara que dirá a verdade, nada mais do que a verdade, podendo ser penalizado se mentir, inclusive criminalmente?

Perfeito.

Doutores, podem iniciar as perguntas. Depoimento de um zelador Sim, senhor. Fui eu mesmo que encontrei o corpo. Eu… Meus dados? Ah, sim. Me chamo Agnaldo Ferreira. Tenho cinquenta e sete anos. Moro em São Cristóvão, mas trabalho no parque há vinte e cinco anos, como zelador. Como? Não, senhor. Não sou parente de nenhuma das duas vítimas, mas já vi a moça lá algumas vezes. Então, eu estava queimando as casas de marimbondo nos quiosques. Esses bichos são umas pragas! Eu acabei encontrando o corpo perto de um quiosque que fica bem afastado da pista de corrida, escondido no meio de várias árvores e onde nenhuma câmera de segurança pega. Eu tropecei no rapaz. Estava uma coisa horrível! Todo inchado! Os beiços estavam gigantes e as pálpebras, roxas e tão grandes que cobriam os olhos. E não era só o rosto, não: ele todo parecia ser um balão inflável, roxo e vermelho. O pescoço estava tão grande que parecia caxumba. Eu diria que ele foi espancado. E quem o espancou deve ter demorado bastante tempo. Ou melhor, não foi só uma pessoa. Deve ter sido uma gangue, porque um homem só não conseguiria fazer aquilo (nem mesmo um bandido famoso). Soco, chute, pontapé, cotovelada… o pobre rapaz deve ter sofrido bastante. A moça eu não vi. Mas, Senhor Juiz, se eu puder fazer uma observação, essa moça não estava com esse rapaz nesse dia. Eu já os vi outras vezes, sim, mas, dessa vez, ela estava com outro. Certeza absoluta, doutor. Ela sempre está com um rapaz diferente. A cor da roupa? Ele usava uma camisa vermelhas e shorts também vermelhos. Tenho certeza. Era algo por aí, sem dúvida. O celular da vítima? Não, não sei. Não sei de nada que ele tinha nos bolsos. Quando vi aquele… Bem, quando vi o rapaz, me assustei e corri feito doido, na hora. Depoimento de um policial militar

Meu nome é Cabo da Cunha, vossa excelência. Tenho trinta e… Ah, o nome completo? Perdão. É Luiz Soares da Cunha. Tenho trinta e cinco anos e sou policial há sete. Moro no Santa Lúcia. Faço ronda e atendo ocorrências na Zona Sul da capital. Não sou parente de nenhum envolvido, mas tenho história com o acusado. É que esse mau elemento já é um conhecido da polícia, excelência. Começou praticando assaltos desde pequeno. Saía e entrava da Fundação Casa praticamente todo mês. É especializado em roubo de celular. Como sabem, ele também matou dois colegas de cela: apunhalou um com um pedaço de vidro e o outro, com uma escova de dentes quebrada. Ambas as vezes na barriga, para que a vítima morresse lentamente. Ele sabe artes marciais. É por isso que ganhou o apelido de Samurai. Foi difícil pegar esse mau elemento. Como corre! Só parou quando atirei. Era a coisa certa a fazer. Sim, excelência. Eu dei ordem de prisão e até atirei para cima para avisar. Mas ele não parou. E, como se trata de um elemento de alta periculosidade, decidi efetuar o disparo. Esse elem… Tá, tá, tudo bem, não vou mais chamá-lo assim. Esse rapaz foi o culpado, tenho certeza. Por que ele iria correr se não tivesse sido ele? Como policial, eu tinha o dever de atirar, doutor. Foi flagrante delito. Eu estava passando com a viatura, quando recebi o chamado de quem alguém havia sido apunhalado no parque. Sim, apunhalado. Sim, estamos falando do mesmo caso. Fomos até lá e reconheci o Samurai, correndo todo ensanguentado, com um sabre, também ensanguentado, em mãos. Foi aí que empreendi perseguição a pé. Examinei o corpo, sim. Além de estar um pouco inchado, tinha recebido vários golpes de faca. Depois, descobrimos que haviam sido vinte e sete facadas. A maioria no tronco e no pescoço. Isso evidencia que foi Samurai mesmo quem perpetrou o crime. Sua habilidade com armas brancas é notória. Socos e chutes? Não, acho que não [risos]. Mil perdões. É que Samurai é um rapaz pequeno, tem exatamente 1,55m e 49kg. Não seria capaz. Sim, exatamente esse peso e essas medidas. Sim, doutor, tenho certeza. Já o prendi tantas vezes que decorei. A vítima usava uma roupa toda branca, mas ficou meio rosada por causa do sangue. O celular e a carteira eu não sei o que aconteceu. O celular estava tocando, mas não sei o que houve depois. Não toquei no corpo; apenas o isolei até que o legista chegasse. Ah, não. O doutor entendeu errado: eu só dei uma olhada no corpo, não o “examinei”. Me perdoem se me expressei mal. A mãe do falecido chegou minutos depois. Foi ela quem me fez colocar o corpo na viatura, mas ele chegou morto ao hospital. Sim, doutor, sei muito bem que esse não é o protocolo. Mas ela insistiu demais, chorando muito alto, então acabamos cedendo e levando o corpo na viatura. Depoimento da vítima, uma estudante

Bom dia a todos. Me perdoem se eu não conseguir falar direito, é que ainda estou bastante consternada. Me chamo Jana Katharina Kohlmeyer van den Heuvel. Jana se escreve com “J”, apesar de se pronunciar assim mesmo: Iana. Não, senhor. O primeiro sobrenome é alemão e o segundo, holandês. São as famílias dos meus pais. Eu tenho dezessete anos de idade. Eu sou estudante de medicina e moro em um condomínio bem ao lado do parque, no Jardins. Por isso estou sempre por lá, fazendo caminhada. Vou praticamente todo fim de semana. Não, senhor, gosto de ir sozinha. É que ouço podcast enquanto caminho. Podcast. É tipo rádio, só que pela internet. Naquele dia, eu fui com… com Marcelo… Desculpa, gente… [Bebe água]. Eu fui com Marcelo, meu namorado, para o parque. Ele me levou até um quiosque. Achei estranho aquele quiosque afastado, mas Marcelo me obrigou a ir. Perdão? Não, senhor, nada físico. Ele apenas mandou eu ir e eu fui. Vocês viram o tamanho dele? Eu… Ai, desculpa! Não foi a minha intenção derrubar o copo! É que a minha mão está muito suada. Perdão. Tragam mais água, por favor. Muito obrigada. Nosso relacionamento era abusivo. Não, senhor, ele nunca me bateu. Relacionamento abusivo não necessariamente significa tortura física, senhor. Ele tinha fotos minhas no celular. Sabe, nudes. Ele nunca ameaçou, mas eu tinha medo que ele fosse vazar as fotos. Mesmo assim, eu estava pensando em terminar com ele, naquele dia. No quiosque, eu contei para ele que queria terminar. Foi quando ele ficou violento. Tentei me afastar, mas ele era muito forte. Foi horrível! Ele me beijava à força, rasgava minha roupa. Ninguém ouvia meus gritos lá daquele quiosque escondido. Então eu vi uma casa de vespas no quiosque; na madeira, assim, em cima. Bati as minhas costas com força na pilastra e a casa e vespas caiu bem na cabeça dele. Ele começou a gritar e eu corri. Eu não queria que ele morresse, claro. Eu liguei para o celular dele várias vezes, mas ele não atendeu. Minhas memórias do dia já estão se esvaindo, mas acho que ele usava uma camisa rosa. Samurai? Mas o quê… Não faço ideia do que o senhor está falando. Não, não sei mesmo. Não, senhor. Não fiz exame de corpo de delito… Me recusei. Tenho medo. Depoimento de um padre

Bom dia, meritíssimo. Bom dia a todos. Chamo-me Padre Johannes Lowe. Perdoem a sotaque: sou austríaco. Meu envolvimento com a caso é que fui chamado a benzer a corpo. Estava eu a fazer jogging pelo pista de corrida quando ouvi gritos e fui ajudar. A corpo da menino estava um horror, perdoem a expressão. Dei-lhe o benção final e rezei por ele. Espero que esteja na céu agora. Sim, eu estava a praticar desportos. Tinha acabado de jogar futebol também. Padre não é filho de chocadeira! [risos] E acho que a rapaz também tinha vindo exercitar-se, pois estava a usar roupas para isso. Acho que era alguma roupa de time de futebol, mas não tenho certeza. A celular estava em seu mão. Sim, a rapaz morreu utilizando-se da telemóvel. Parece que os jovens de hoje nunca se desgrudam do celular. Depoimento de uma senhora

[assoa o nariz em um lenço] Meu nome é Ana Maria. E a pessoa morta nesse caso é meu filho… Eu [muito baixo para transcrever]. Perdão, vou falar mais alto. [assoa o nariz mais uma vez]. Tenho cinquenta e três anos e moro perto do Centro. Sou a mãe de Marcelo. Foi muito difícil identificar o corpo. Sabia que era ele por causa de suas roupas de malhar de cor vinho, que eu comprei, e por causa de seus músculos. Que horror a mãe não reconhecer o próprio filho! o quê? Mas o quê…? Não! Eu só vi o corpo do meu filho no IML, já morto! Como assim eu o vi no parque e implorei para o policial levá-lo na viatura? Não era eu! Desculpem eu ter me exaltado. Mas é muita incompetência. Eu não conheço essa tal de Jana. O Marcelo era um menino muito bonito. Lindo de rosto e de corpo. Além de termos uma boa condição social. Por isso, ele sempre estava com uma menina nova. Samurai? Mas que m… vocês estão falando? Depoimento do ladrão e homicida conhecido como “Samurai” Me chamo Mateus Correia, sem “H”. Moro na Barra. Tenho vinte anos e com certeza não sou parente de ninguém aqui. Sim, Sr. Juiz, tenho vinte anos, apesar de não parecer. Sim, sou lutador de artes marciais; por isso tenho o vulgo de Samurai. Também sou faixa preta e campeão estadual em várias modalidades. O que eu sei usar? Praticamente tudo. Qualquer espada ou adaga, bastão nunchaku, shuriken, tudo. Se eu sei socar e chutar? Claro! Que artista marcial eu seria se não soubesse? Não, Sr. Promotor, não trabalho e nem estudo. Como ganho dinheiro? Não ganho. Eu moro com minha mãe. Sim, cometi erros na adolescência, mas melhorei. Entrei para a Igreja. Sou evangélico agora. Vou para o culto sempre que posso e também para retiros e outros eventos. Toco guitarra em uma banda gospel. As vezes que matei foram todas legítima defesa; teriam me matado antes. Não, nunca roubei. Não, Sr. Promotor, nunca. Apenas me meti em confusão. Mas sempre foram eles que começaram, nunca eu. Sim, eu namorava a Jana. Não, ela não namorava o Marcelo. Ela queria terminar com ele. Ela namorava comigo. Não, ela não terminou oficialmente, mas, para ela, já estava acabado. Ela me disse isso. Eu e Marcelo estudamos no mesmo colégio. Eu nunca gostei dele. Por que um playboy daqueles estudaria em um colégio público? Para exibir os tênis e o smartphone? Tá, eu não mataria ele por isso. Não mataria ninguém por um motivo desses. Só não gostava dele, e daí? Vou contar o que aconteceu lá no parque. Papo reto. [fecha os olhos e respira fundo] Eu e a Jana combinamos que ela iria terminar com o Marcelo, oficialmente. Se ele ficasse violento, eu a defenderia. Eu os segui de longe enquanto eles foram até um quiosque meio escondido. E então… eles começaram a se beijar! Foi consentido, sim. Eles pareciam um casal apaixonado de filme. Fiquei com muito ciúme é claro. Senti que ia começar a chorar, mas então o Marcelo ficou louco. Louco de maluco, seu juiz. Doido de pedra. O cara tava gritando e se balançando feito um bicho. Jana começou a gritar então eu corri para cima dele porque eu queria defender a menina. Sim, fui com a arma. Não, aquilo não é uma espada; é um facão chinês. Eu não ia atacar ele. Não de primeira. Só ia ameaçar. Mas ele tava possuído por um demônio! Seus olhos estavam vermelhos e lacrimejavam. Ele mexia a boca para falar alguma coisa, mas era como se um mudo tentasse cantar. E foi aí que aconteceu: ele enfiou o facão nele mesmo! Várias e várias vezes sem parar! Eu não tô mentindo! Foi suicídio! Não, foi assassinato! Ele foi assassinado por Satanás! Ele foi assassinado por demônios, vocês ouviram?! [Sessão de julgamento suspensa por cinco minutos] Sim, estou mais calmo. Prometo. Peço desculpas. Mas é que vocês não viram o que eu vi. Sim, podemos continuar. Foi mal. Eu peguei o facão de volta. Fiquei com medo de que fossem achar que tivesse sido eu quem matou Marcelo. Eu corri, mas um policial saiu não sei de onde e me deu um tiro. Nem gritou nem nada; já chegou atirando. Esse policial me persegue, Sr. Juiz. Ele perdeu muito dinheiro para o meu pai, nas cartas, então ele desconta em mim. Ele… Tudo bem, não vou ficar mudando de assunto. Não, eu não roubei o Marcelo. Não sei onde o celular e a carteira dele foram parar. Nunca roubei ninguém na vida. Sim, eu tenho uma condição social baixa, mas não roubo por isso. Pobre não é ladrão. Não, eu não iria atrás de Jana depois. Quer dizer, não para matar ela nem nada disso. Eu iria atrás porque ainda não desisti dela. Sou apaixonado por ela desde a primeira vez que a vi, em uma festa. Eu não me aproximei dela. Como poderia? Só a bolsa dela vale mais do que a minha casa. Foi ela quem chegou junto. Disse que ouviu falar de mim, que viu meus vídeos de artes marciais. Foi aí que começamos a namorar. Ou, pelo menos, assim eu achava. Texto encontrado no celular da vítima. O celular foi deixado na porta da 1a Delegacia Metropolitana, embalado em um lenço. No lenço estava escrito “Me desculpem”. Meu nome eh Marcelo. Tenho 20 anos e sou estudante de direito na Federal. Se você tah lendo isso, eh porque morri. Minha garganta tah crescendo. Não consigo falar e muito menos respirar. Um menino de rua saiu não sei de onde e me deu uma peixeira, que eu, no desespero, usei para tentar abrir uns buracos para o ar passar. Deu certo no início, mas depois os buracos ficaram entupidos de sangue e o ar não entra mais. Tudo o que a Jana disser, não acreditem. Ela eh uma mentirosa patológica. Eh também psicopata. Não se importa com ninguém, ao não ser com ela mesma. Eu estava pensando em terminar com ela há mais de um ano, mas ela eh louca. Sempre que vou falar em término, ela me beija e me seduz. Eh uma manipuladora. Eu sei que ela sai com outros. Contratei detetive particular e tenho fotos dela com vários outros homens. E homens velhos. Como vcs acham que ela tem aquelas jóias? Ela eh classe média alta, sim, mas não eh milionária. Eh soh ver as fotos nas redes sociais dela. Aquilo eh propaganda de puta! Ela tah até ligando para mim agora. Maldita… A visão tah ficando turva. Meus olhos tão coçando. A pálpebra tá crescendo e já não consigo nem ver direito. Parece que eh mesma coisa de quando eu como amendoim. Que jeito merda de morrer.

FIM




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